“Portugal não está preparado para enfrentar a crise”
Carvalho da Silva alerta que a governação de José Sócrates, de execução do neo-liberalismo, "conduz a sociedade para becos muito perigosos". O líder da maior central sindical do País avança, ainda, que Portugal não está preparado para enfrentar a crise".
O que é que a revisão da legislação laboral tem de tão gravoso que impediu a adesão da CGTP ao acordo firmado em concertação social?
Esta revisão, do ponto de vista de conteúdos, concretiza, em dois campos fundamentais, alterações que têm impactos gravosos para os trabalhadores: na contratação colectiva e na organização, gestão e controlo do tempo de trabalho. Esta revisão é, ainda, insuficiente no campo do combate à precariedade no trabalho. Estes são os três campos fundamentais.
O que é que a CGTP critica na contratação colectiva?
Esta proposta do Governo consubstancia a concretização de um velho objectivo de sectores patronais mais conservadores, que é estoirar com o edifício de contratação colectiva que se estruturou no País ao longo de quarenta anos.
Fala da caducidade dos acordos de contratação colectiva?
Esta revisão propõe um conjunto de mecanismos que leva a que os contratos existentes terminem. Uma afirmação da valorização de nova contratação. E o campo para o desenvolvimento dessa contratação alterou-se radicalmente, por factores de contexto - em que as relações entre o capital e o trabalho são significativamente desequilibradas em desfavor dos trabalhadores - e por alteração do princípio do tratamento mais favorável - em que a contratação colectiva não podia inscrever compromissos entre patrões e trabalhadores inferiores aquilo que estava estipulado nas leis gerais. Portanto, a partir de agora, não é apenas o contexto do emprego (taxas elevadas de desemprego, precariedade, processos de deslocalização) que pesa nas relações laborais, é também o facto dos patrões poderem, em diversas matérias, negociar para poderem baixo. Os trabalhadores vão ser colocados em estado de necessidade.
Mas esses acordos vão ser estabelecidos por negociação colectiva.
Pois, mas a negociação colectiva é feita pelos dirigentes dos sindicatos e se não há representação de base ela não tem eficácia. Ou seja, eu posso ser o melhor negociador do mundo, mas não há nenhum representante dos interesses do capital que não veja se aquilo que estou a dizer tem uma base de sustentação - o apoio dos trabalhadores. Hoje existe menos organização sindical porque a liberdade sindical está, permanentemente, a ser posta em causa nos locais de trabalho. Hoje há menos direitos sindicais efectivados e uma maior fragilidade dos sindicatos.
Nesse aspecto não existe culpa das centrais sindicais?
A culpa é do contexto em que vivemos. Os trabalhadores, quando metem a cabeça a defender os seus direitos, o que lhes acontece, em muitos casos, é irem para a rua. É preciso dizer-se com clareza que, em Portugal, não há efectiva liberdade sindical - isso é uma treta. Claro que os sindicatos têm as suas deficiências e limitações, mas o problema de fundo é que não há efectiva liberdade sindical.
E a questão do tempo de trabalho?
As alterações ao Código de Trabalho propõem que as horas extras deixem de ser pagas como tal. Isto é, que o trabalho que é extraordinário - por ser para além do período normal - não seja pago como extraordinário. Há aqui um objectivo claro: tornar os custos do trabalho mais barato, pagando menos aos trabalhadores. Por que razão as horas trabalhadas para além do período normal se chamam extraordinárias e são pagas com um acrescento? Historicamente, o trabalhador quando faz um contrato de trabalho dá a sua disponibilidade temporal, capacidade física e intelectual para a prestação do trabalho. Com isto, dentro do horário estipulado, o trabalhador obriga-se a fazer um conjunto de tarefas. O tempo, para além deste horário, não é tempo do trabalhador na sua condição de trabalhador, é tempo do trabalhador na sua condição de cidadão.
As empresas não têm necessidade de se adaptar aos ciclos da economia e dos negócios?
Só um ingénuo é que não sabe que o problema das adaptações sempre existiu. No início da industrialização, no século XIX, também se dizia a mesma coisa: não era possível estabelecer-se um horário de trabalho porque as empresas tinham-se de adaptar de acordo com as necessidades. Nessa altura evocavam-se as condições climatéricas, de fornecimento de energia... Problemas que não são os actuais. E os trabalhadores conquistaram o direito a um horário de trabalho. Não nos podemos esquecer que o bem primeiro que qualquer ser humano tem é o tempo.
Que temos de fruir...
Se a condição de trabalhador passa a colocar o tempo do cidadão dependente das fundamentações e das posições do patrão estamos perante um retrocesso histórico. O que está a ser proposto leva à redução da retribuição do trabalho e coloca o tempo do trabalhador, enquanto cidadão, menos liberto.
As lutas dos trabalhadores estão prisioneiras da luta política geral?
Há sempre uma relação profunda entre as lutas no plano sócio-laboral e a luta política. A precariedade no trabalho, por exemplo, é um problema laboral de grande significado. Os sindicatos têm de reforçar a sua capacidade de intervenção e as formas de agir em relação ao combate à precariedade no trabalho. Mas, sendo um problema social e laboral, tornou-se numa questão política. É claro que os problemas do âmbito sindical têm, em muitos casos, uma relação profunda com a agenda política.
Como responde aqueles que acusam a CGTP de ser uma correia de transmissão do PCP?
Esse é um velho slogan... Dá jeito ao Governo e a alguns patrões escamotearem a discussão. Choca-me ver o primeiro-ministro, em torno do Código do Trabalho, não falar objectivamente de nenhuma das matérias significativas que estão em cima da mesa. Só fala de fait-divers.
José Sócrates tem falado muito do combate à precariedade.
Na generalidade, as propostas pontuais que foram feitas no que respeita à precariedade nem nos merecem, se quer, tempo de discussão - porque são positivas ou porque não vão ter efeito. Mas o combate à precariedade passa pela resolução dos problemas estratégicos que estão na origem da precariedade e não por aspectos complementares.
O primeiro-ministro garante que este código dinamiza a contratação.
Ele não diz que primeiro matam a contratação existente e que depois os trabalhadores vão ter de fazer contratos em condições totalmente novas e em situação de muito mais fragilidade. A governação neo-liberal fala de factores laterais e o que aprova, depois, não tem nada que ver com aquilo que andaram a difundir. Este é um drama da sociedade portuguesa: fuga à abordagem do concreto.
Portugal está preparado para enfrentar a crise internacional que se sente na economia?
Infelizmente, Portugal não está preparado para enfrentar a crise. Há um fazer de conta que o que se está a passar não tem que ver connosco e que nós, com umas artes de chico-esperto - porque é esta a prática que impera no estilo de governação que vamos tendo -, arranjamos uma solução. Portugal tem seguido uma submissão a políticas de fundamentalismo monetário e financeiro. É o tempo em que vivemos: o predomínio do financeiro sobre todas as outras componentes estruturais da economia. Portugal, seguindo esta linha, com as suas fragilidades significativas, vem acentuando os seus problemas e a sua divergência da UE. Um dos campos onde o desastre tem sido mais significativo é na destruição do aparelho produtivo.
Quais os grandes desafios da CGTP para depois das férias?
Os grandes desafios são acompanhar e intervir no processo de fecho da revisão da legislação laboral, com o maior empenho possível, e procurar tornar claro à sociedade portuguesa aquilo que está em jogo. Com esta revisão do Código do Trabalho vamos entrar num novo ciclo das relações do trabalho em Portugal e a CGTP tem a obrigação de tornar claro o que está em causa no País e ajudar os trabalhadores a perceberem a importância de se organizarem. Neste momento, o apelo fundamental aos trabalhadores do sector público e privado é organizem-se colectivamente. Se não se organizarem colectivamente podem vir a ter enormes prejuízos. Já não digo sindicalizem-se, digo organizem-se.
Com as devidas adaptações, acha que estamos perante o caldeirão social do século XIX?
Não. Mas um caldeirão social muito complexo e mais global. Temos de ir à origem, não para tomar a receita da origem, mas para vermos os avanços que conseguimos e projectar o futuro. Costumo citar uma ideia do Bento de Jesus Caraça: "é muito importante o individual, mas se o colectivo não se afirmar sobre o individual não há humanização da sociedade". Nós hoje vivemos debaixo de uma convergência de pressões extremamente perigosas onde se cruzam, essencialmente, três aspectos: o individualismo institucionalizado; um consumismo alienante; e o valor do dinheiro que se sobrepõe ao valor produtivo.
O ministro Vieira da Silva salientou que o modelo de capitalismo que fez os assalariados criar os sindicatos já não existe. Perante as dinâmicas sociais contemporâneas que papel podem desempenhar os sindicatos?
Essa é a verdade de La Palisse: nós já não estamos no início da era industrial. Os sindicatos emergiram na sociedade como movimentos sociais, de solidariedade, mutualistas, de garantia de equilíbrio entre trabalhadores e patrões... É evidente que nós não estamos no século XIX, mas os anseios dos seres humanos trabalhadores continuam a estar centrados nas mesmas bases. É preciso ver como é que se estabelece um horário de trabalho e quem o controla. É preciso ver se o trabalho é justamente remunerado ou não.
Veria com bons olhos uma coligação pós-eleitoral de esquerda?
Um dos desafios fundamentais que todas as forças de esquerda devem trilhar é a procura de caminhos alternativos. É preciso mudança. A governação de execução do neoliberalismo conduz a sociedade para becos muito perigosos. É importante que surja, depois da procura pelas forças de esquerda caminhos alternativos, disponibilidade e capacidade para uma proposta que se consubstancie na execução dessas políticas. Os caminhos de futuro, numa perspectiva de esquerda, passam por um olhar muito mais profundo pela valorização do trabalho.| Semanário | Duarte Albuquerque Carreira
2008-07-31
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